sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

PERGUNTE AO CLIC

(participe enviando suas perguntas sobre algum livro ou texto específico que tenha lido, ou questões genéricas sobre a criação literária e outros temas em que queira a opinião do nosso clube de leitura através de seus leitores e escritores) 


  1. Sobre "temas e histórias pouco edificantes": o que faz um escritor escrever sobre assuntos ou cenas "pouco edificantes"? (C.)
 (novaes/ responde) A primeira resposta é aquela que Carlos deu: lembranças de situações ou pessoas que de alguma maneira marcaram o escritor e ficaram, às vezes por décadas, "cozinhando" em sua mente e para a qual, de alguma maneira, o autor usa a arte para "desencanar" daquela "assombração"... rsrsrs... É como se fosse uma necessidade de dar um destino àquela personagem real/mental, uma vida, para que ela siga o seu rumo e nos deixe a cabeça!  E, nessa tarefa, muitas vezes só mesmo a presença do absurdo pode saciar o escritor, pois há que ser algo inusitado, algo fantástico. Se aquela pessoa/personagem nos marcou, teve força pra isso pelo que tinha de diferente, ou de triste, ou de mau, ou de doentio, não há de ser uma história banal - casou-se, teve filhos, netos e morreu - que poderá pôr fim ao incômodo que aquela pessoa/personagem nos causou. Ela não é "normal", então precisa de um fim, uma solução "de vida" (hipotética) também diferenciada.

Claro que existem mil "saídas" para essas lembranças e personagens, mas cada caso é um caso, e vai também do espírito do autor no momento de escrever. Umas viram crônicas, que imaginam futuros (ou nem isso, apenas constatam um fato ocorrido) e tiram conclusões. Outras pedem contos - onde a personagem pode ser mais definida, porque totalmente ficcional, e também pode ser mais "fantástica". E há os casos em que a ideia da história não parte de lembrança nenhuma, mas só da imaginação mesmo.

Além desses aspectos, penso ainda em outros que podem nos levar a escrever cenas de violência extrema, de sexo bruto e desbocado, situações escatológicas, nojentas, absurdas, antinaturais, enfim, todas essas coisas que causam espanto, nojo e até mesmo rejeição a uma boa parcela das pessoas.

Tentando resumir quais seriam: 

  • Nosso lado obscuro - Os autores (e provavelmente a maioria das pessoas) têm seu lado obscuro. Ninguém é só paz, também temos guerra dentro da gente. Ninguém é só amor, também trazemos ódio. Ninguém é só luz e clarividência, há sombras e dúvidas. E por aí vai. Faz parte da arte (ela tem um papel terapêutico para o artista, por isso ele tem tanta "necessidade" de exercê-la), faz parte da arte que esse lado obscuro se faça presente, que brote do artista/escritor. Como a arte não é uma atividade apenas cerebral, expressa-se sentimentos, não há como os sentimentos ruins não virem à tona (junto com os bons)... Um escritor puramente cerebral, só se for de livros técnicos, doutrinários ou de auto-ajuda... Ficção é invenção e isso passa por emoções. Eu, por exemplo, percebi recentemente que alguns contos que escrevi contêm muita raiva, foram escritos com raiva. Mas não entenda mal. Não são contos raivosos, há poesia neles, mas a raiva também faz parte, como uma certa carga. Entenda que as histórias que eles contam nada têm a ver comigo, são absolutamente ficcionais. O sentimento é que está lá. Diferença importante de ser notada. Já percebi que as pessoas tendem a achar que há algum fundo de verdade na história, que o autor viveu situação semelhante, etc, o que não tem nada a ver. Logo depois da premiação lá na UFF, e da apresentação teatralizada que fizeram lá, vieram me perguntar se meu filho Felipe, que estava lá, quis na adolescência ir pra Itália, etc.... Mais uma vez, nada a ver! Ele nem pensou nisso! Mas uma prima de Rita leu o conto e me disse que via ali nossa família... aí tudo bem, com certeza eu passei no texto sentimentos e interrelações que ela já viu aqui em casa... mas não os fatos do conto, e sim o "jeitão" das personagens, etc. O bom desse lado "obscuro" vir à tona na literatura, é que ele pode fazer contato com os lados obscuros de tantos e tantos leitores que de outro modo não os trariam à tona, talvez nem os reconheceriam, deixariam guardados nalgum canto da mente, do coração ou da alma. E ficar guardado... não é bom! É preciso "elaborar", diriam os psicólogos... Pode ser o primeiro passo para tirar certas coisas "ruins" (entre aspas) de dentro das pessoas, liberando-as.

  • A busca do surpreendente e do revelador - Qualquer autor quer ir além da imaginação mediana, é isso que torna sua história original. Particularmente no gênero Conto isso é crucial. A história é curta. Não tem o fôlego de um romance, onde vários aspectos podem ser desenvolvidos (personagens, detalhes da história, contexto histórico como pano de fundo, dramas humanos que se entrelaçam, etc). No conto trata-se praticamente de um episódio, um evento. O autor tem logo de cara dois desafios: fazer um texto que prenda a atenção do leitor desde o início e apresentar uma história que de alguma forma surpreenda ou faça uma revelação. Imbuído dessa missão, o autor não vê como rejeitar quando lhe surge na mente algo "pouco edificante" que dê partida ou surja como solução para a história. Se esses elementos "pouco edificantes" fazem sentido e estão bem compostos na história... não será o autor quem vai censurá-los... Contar histórias diferentes, jamais imaginadas, por mais repugnantes que sejam (ou pareçam), não há escritor atual, moderno, que se furte! E vejam... a vida imita a arte... qualquer dia vê-se notícia de fato real semelhante ao que foi imaginado pelo autor.

  • O desafio literário - Ora, exatamente por não serem ditas, e muito menos escritas, a toda hora, as cenas "pouco edificantes" significam um desafio interessante para o autor. Saberei eu escrever essas passagens de um modo intenso, que passe todo o horror da situação? Saberei fazer isso sem descambar para o pornográfico? Mas saberei escrever com liberdade, sem cair num recato pudico que seria ridículo? Escrever 15 ou 20 linhas disso, com sucesso, valhe-nos muito mais (pelo menos para mim) do que 150 ou 200 linhas do feijão-com-arroz. É como se fosse o momento dramático de um filme inteiro: precisa ser muito bem escrito, passar toda a força da cena. As pessoas deviam curtir isso... mais do que é contado... rsrsrs... Num conto meu, escrevi que o personagem, que se hospedara numa espelunca, um hotelzinho de quinta categoria, dirige-se ao banheiro e posta-se de frente para o vaso fétido. Lendo o conto, meu filho entortou todo o rosto (não foi só o nariz...) com essa expressão, sentindo nojo do negócio. A cena como um todo já era bastante intensa, então acabei substituindo o "fétido" por encardido, ficou o vaso encardido. Acho que foi uma boa mudança, porque o principal aspecto ali para mim não era mesmo o estado do vaso, mas o estado do personagem que se postara diante do vaso para... (deixa pra lá). Mas eu adoraria usar essa palavra "fétido"... espero fazê-lo numa outra oportunidade. Então tem essa coisa do prazer de escrever, de usar palavras pouco usadas, de construir frases e parágrafos que exprimam com maestria o que se quer dizer. Um artista plástico pode estar muito feliz com o tema do seu quadro e com a composição que desenhou, mas tem um prazer especial - é um prazer técnico - por ter misturado duas ou três cores e ter atingido um tom que julga sublime, espetacular, numa das partes da obra. 

*


Oi novaes/

Fiquei muito feliz de encontrar sua resposta, que, aliás, é ótima e me ajuda a entender este hábito novo em minha vida que veio com o Clube de Leitura. O Evandro sabe que eu tenho esta e outras questões similares sempre que pego um livro/texto de ficção. Sendo assim nos últimos 4 anos eu o perturbo com muitas perguntas.

Na minha adolescência, minha irmã mais velha era (e ainda é) ligada a Literatura, mas eu não nutria interesse algum. Eu gostava de enciclopédias e leituras que me ensinassem algo do mundo ou do Universo, mas não relacionado ao sentimento humano. Eu achava que Literatura era conversa fiada. Isso não significa que eu desprezasse Literatura ou não desse valor ao sentimento. Só não era o que prendia meu interesse.

Com o Evandro passei a ler os livros do Clube e aos poucos venho tentando entender o que é isso que acontece com a linguagem na sua viagem rumo ao que está dentro de nós e que é seu alvo natural. O que ela toca nas pessoas que as faz querer continuar a ler, ler outros livros, achar lindo, se emocionar de alguma forma ou sentir repugnância e ainda continuar a leitura.

Minha meta é escrever um texto cujo título será algo tipo “Por que leio este livro?”. E será mesmo um trabalho de auto-conhecimento. :)

Teu texto foi super esclarecedor e estou satisfeitíssima com tua resposta. Muito obrigada!

Abração!
C.

PS: “No conto trata-se praticamente de um episódio, um evento. O autor tem logo de cara dois desafios: fazer um texto que prenda a atenção do leitor desde o início e apresentar uma história que de alguma forma surpreenda ou faça uma revelação. Imbuído dessa missão, o autor não vêcomo rejeitar quando lhe surge na mente algo "pouco edificante" que dê partida ou surja como solução para a história.”

Ah, então foi daí que veio a Druuna?

*
Oi C.

Legal que te valeu o texto.

Olha, esta sua colocação:


Eu gostava de enciclopédias e leituras que me ensinassem algo do mundo ou do Universo, mas não relacionado ao sentimento humano. Eu achava que Literatura era conversa fiada.  Isso não significa que eu desprezasse Literatura ou não desse valor ao sentimento. Só não era o que prendia meu interesse.

Foi o mesmo comigo! Idêntico! No meu caso, com um viés para a História, o que os homens fizeram no mundo e do mundo... E uma fome por Biografias - que devorei aos montes. Sempre me pareceram, as biografias, conterem todas as emoções dos romances, com a vantagem que aqueles fatos, passagens, conflitos, derrotas e vitórias pessoais ocorreram de verdade!!! Não eram invenção de alguém. Puxa, muito mais excitante - sempre me pareceu assim.

A única ficção, por assim dizer, que li bastante, durante uma época, foi poesia ("a mãe das ficções", segundo um importante aí). Mas só agora mesmo com o CLIc é que me envolvi de vez com a leitura ficcional.

Quanto à Druuna, pois é, já estava na cabeça escrever sobre um meio louco que se apaixonava por ela (de verdade). Não podia perder uma história assim....! 

Abs,
novaes/

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